7 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 312

Efemérides 7 de Novembro
William J. Birnes (1944)
Nasce em Nova Iorque (?), EUA. Editor e escritor de bestsellers, especializado em ovnilogia. Tem publicado alguns livros de crime real, sempre em parceria com outros autores: The Killers Next Door (1995), Signature Killers (1998), The Psychology of Serial Killer Investigations (2003) e Serial Violence (2009) etc. O destaque, no entanto, vai para The Riverman (1995), sobre a forma como os interrogatórios a um famoso serial killer norte-americano determinaram a captura de um outro serial killer. Livro está adaptado a um filme para televisão.


TEMA — DIÁRIO DE UM ADVOGADO — HONORÁRIOS E PRODUTO DO CRIME
Recebi, hoje, uma carta curiosa. É de um colega recém-formado, que me pede conselho. Diz ele:
“Fui procurado, ontem, por um conhecido. Trazia-me uma causa, que consistia num latrocínio, perpetrado friamente por três jovens, sendo um deles maior de idade, contra um casal de velhos, residentes no subúrbio. Não estou ainda em condições de escolher as causas. Preciso viver, a despesa do escritório e a minha manutenção não me permitem o luxo selecionar moralmente o constituinte. Recebi a primeira parte dos honorários. O diabo é que desconfio, ainda, tenho certeza de que estou ser pago com o produto do crime. E se o constituinte, apertado na Polícia, confessar que me pagou com o dinheiro resultante do latrocínio? Em que posição fico eu?”
Respondi assim:
“Cliente. Pede-me uma sugestão. É difícil fornecê-la em assunto tão subjetivo. A lei impõe a defesa. Seja qual for o crime praticado, é mandamento constitucional, ninguém poderá ser julgado sem defesa. Os processos são nulos se destituídos da nossa intervenção ou da nossa manifestação e o Estado paga advogados para assistir os desprotegidos economicamente. Tudo está em nos comportarmos de maneira correcta e hábil. Ladrão, carteirista, burlão, têm direito a defesa.
No caso exposto, o seu mal-estar resulta da certeza que tem quanto à origem dos honorários. Se essa certeza resulta de uma circunstância, directamente revelada (por exemplo teria o constituinte querido pagar com algum objecto ou produto do crime?), não há como escapar. Seria cúmplice e desmoralizando a profissão. Se entretanto, o pagamento é em dinheiro e pelo vulto do dito, passou a desconfiar, o problema é multo pessoal. Tudo se cinge, a meu ver, na defesa de uma posição delicadíssima. Se o constituinte confessou tudo e não escondeu que anteriormente nada possuía, como poderá o amigo aceitar em pagamento aquilo que adveio crime? Não lhe parece que aí teria o colega entrado fundo num terreno, que de tão perigoso moralmente, irá contagiar a respeitabilidade e a eficiência da profissão. A grandeza da nossa actividade, já disse e é sempre bom repetir, também consiste nisso. Atravessamos o lamaçal, sem se enlamear. Cabe-nos a integração quase completa no problema do constituinte. Nos motivos, nas circunstâncias, no seu temperamento e personalidade. Doutrina, jurisprudência, lei, tudo isso entra em função da compreensão do personagem e determinantes do facto. Estamos vinculados a essas realidades, na pessoa do constituinte, até ao preciso momento em que, se não nos desligarmos dele, tornamo-nos cúmplices.
Agora, se já está tao entranhado no assunto que não pode ignorar a origem, aí, meu caro, a culpa é sua por ter permitido que os factos chegassem a esse ponto. Só há uma solução: essa encontrá-la-á na sua consciência e, também na certeza de que sofrerá. A de que se transigir nesse caso, terá de transigir em muitos outros e adeus toda a dignidade e respeitabilidade da profissão.”


TEMA — CONTO DE TERROR — SILÊNCIO, POR FAVOR
De Pedro Botelho
Com a devida vénia… O presente conto foi publicado em 1986 num jornal diário já extinto, desconhecendo os aspectos biográficos do autor, apesar dos esforços.
M. Constantino
“Número 16 é aqui. Evidentemente que é aqui.” Empurrou a cancela e escalou a subida íngreme em pedra cinzenta, por onde passaria o carro, caso houvesse um carro. Olhou para a esquerda e para a direita, franzindo o sobrolho ao notar o calamitoso estado da relva. “Qual relva?”. De facto, as ervas daninhas, incontáveis em número e variedade, haviam dominado e massacrado os infelizes pés de relva. “Passo sempre dizer quo cultivo erva daninha., considerou, enquanto introduzia a chave na fechadura.
Abriu a porta e declarou, em voz alta:
— Cheguei. Como sempre, o silêncio desceu as escadas a correr e lançou os braços em sua volta. Guardou o chapéu-de-chuva no bengaleiro, pois estava seco; não chovera durante todo o dia. Lançou a gabardina para cima de um sofá quando entrou na sala de estar. Tinha uma certa pressa e nem pensou em ir à casa de banho.
Com cuidado, retirou o disco de dentro do saco, tentando não pôr dedadas na capa brilhante. “La Turesque Maudite”, lia-se na capa. “Que diabo quer dizer Turesque? Era apenas mais uma das várias dúvidas que o disco despertava. Não estava indicado o nome do compositor, ou dos músicos, e muito menos o do estúdio ou engenheiro de som. Não se via data ou número de referência na lombada, ou editora ou data de edição. Apenas se lia, em letras brancas e pequenas, no canto inferior esquerdo da capa negra: “La Turesque Maudite”.
Sentou-se no sofá mais próximo do gira-discos, pousando o álbum nos joelhos e retirando a capa interior com muito cuidado (cuidado que, aliás, dispensava ao manuseamento de toda a sua colecção, que alcançava as largas centenas exemplares).
A capa interior, de papel branco, deixava ver o rótulo. Simplesmente, não havia rótulo, apenas o vinil negro. Pousou o disco no prato e limpou-o com a escova electroestática, enquanto ligava o amplificador. O braço, de funcionamento automático, cravou a agulha de diamante no vinil. Aumentou o volume do amplificador e sentiu uma súbita, incontrolável necessidade de ir à casa de banho.
Levantou-se apressadamente e subiu as escadas para o primeiro andar quase a correr. Enquanto se aliviava, estranhou não ouvir a música. O disco era provavelmente um pouco antigo, e a presença de estalidos no princípio das espiras não seria de estranhar, mas não lhe chegava som algum. “Devo ter-me esquecido de aumentar o volume. Ou a porta fechada não deixa passar o som. Ou é o álbum que está gravado muito baixo.”
Enquanto lavava as mãos, recordou as circunstâncias em que comprara o disco. Entregara o material no jornal, como sempre acontecia às quintas-feiras, e apanhara um eléctrico de volta para casa. No entanto, a carreira devia ter mudado, pois o eléctrico seguira um percurso diferente. Uma certa dose de preguiça fizera com que não saísse para apanhar o transporte correcto. “Já agora”, decidira, “vejo até onde a linha me leva”. O percurso fora longo; calculou que tivesse atravessado a cidade de um extremo ao outro.
Quando o guarda-freio se voltara para trás e anunciara, um pouco agastado, que haviam chegado ao fim da linha, vira-se numa zona que lhe era totalmente estranha. Não reconhecia a fisionomia das ruas, nenhum dos nomes das placas lhe era familiar. “Não há problema”, decidira, “Basta-me apanhar o eléctrico de volta.”
Perguntara ao guarda-freio:
— Quando volta a sair?
— Dentro de quinze minutos — respondera o homem, ainda agastado, passando um lenço aos quadrados verdes e castanhos pela testa suada, embora não fizesse calor.
Uma vez que ainda tinha bastante tempo, decidira fazer um pouco de turismo e explorar as imediações. Fixando bem o local, embrenhara-se por uma rua estreita mas calma e, espantosamente, limpa. Seguira em fronte até ver um beco sem saída, à direita. Entrara no beco e, bem encostada a um muro, encontrara uma loja de discos. Espreitando pela montra vira um rapaz novo e magro, gingando um pouco ao som de uma canção ritmada, que se ouvia bem alto.
Entrara e o rapaz lançara-lhe um olhar estupefacto, como se o espantasse que a loja tivesse clientes.
Ignorando o vendedor, debruçara-se sobre as existências, passando as capas com dedos experimentados. Não encontrara nada que lhe despertasse a atenção; a discoteca tinha os mesmos discos que todas as discotecas têm. Preparava-se para sair, até porque era quase chegada a hora da partida do eléctrico, quando notara a um canto uma caixa de cartão com um papal colado, onde alguém escrevera “descontos especiais”.
“Já agora”, decidira, encolhendo mentalmente os ombros. Examinara o conteúdo da caixa. Eram os mesmos discos que as outras discotecas vendiam, apenas num estado consideravelmente pior. Um deles era “La Turesque Maudite” e a capa estava em excelente estado, sem rasgões nos cantos, lombada dobrada ou dedadas no plástico. Retirara-o e levara-o ao balcão.
— De quem é?
O rapaz não lhe soubera responder, mas ainda assim não resistira a largar um pouco de dinheiro e levar para casa uma potencial raridade.

Saiu da casa de banho e desceu as escadas, ainda sem ouvir qualquer som. Aproximou-se da alta-fidelidade e pôs o volume mais alto, mas os altifalantes insistiram na inactividade. “Estão desligados…”
Não estavam. Tremendo um pouco, pegou no braço do prato com a mão, para o colocar um pouco mais à fronte. O braço escapou-se-lhe dos dedos e a agulha caiu no disco. Ainda assim, não se ouviu qualquer ruído. Levantou-se e colocou as mãos nas ancas, mirando a aparelhagem com desconfiança. Pigarreou um pouco. Pigarreou de novo. Não ouviu o “arrhum-arrhum” de quern pigarreia. Bateu com o pé no chão e o soalho tremeu um pouco, mas não lhe chegou som, mais uma vez.
Preparou-se para gritar, receando que a surdez tivesse feito uma nova vítima. Não conseguiu, pois não sentia a boca. Levou a mão aos lábios, mas apenas sentiu a pele lisa. “Mas que é isto?”, perguntou-se, já com bastante medo. Fez tremendos esforços com a garganta, mas não saiu som através de lábios que não existiam. A língua tentou furar através da pele, em vão.
Saiu da sala a correr, atravessou o corredor e o jardim.
“Preciso de encontrar alguém, um médico ou coisa do género”, aconselhou-se. Na rua passou um carro a velocidade elevada — a zona onde vivia era pouco frequentada. Acenou para o carro, que prosseguiu em silêncio absoluto. Desceu a rampa e abriu a cancela. Olhou em volta e viu uma vizinha, carregando um cesto de compras. Dirigiu-se a esta e parou, pois a mulher não tinha boca. Passou, arrepanhando a pele no que teria sido um sorriso, caso houvesse lábios para sorrir.
“Oh, não! Será uma epidemia?” Seguiu pela rua até chegar a um cruzamento onde havia um grande número de lojas. Seria uma boa maneira de confirmar a extensão da doença. As pessoas passavam na rua, algumas saudavam-se, e nenhuma tinha boca. Num café viu um homem torcer a pele para o criado, que lhe entregou um copo de leite. Um miúdo, encarnado e choroso, conseguiu ser bofeteado pela mãe apenas pela intensidade dos esgares. Dois velhos olhavam atentamente um televisor ligado na montra de uma loja de eletrodomésticos, não mostrando qualquer apreensão pelo facto de a locutora não ter lábios para cobrir com baton.
“Como é que comem?”
Voltou ao café, a tempo de ver o homem que pedira o leite sair, tendo já pago, embora o copo continuasse cheio.
“Será melhor voltar para casa, ligar a televisão, pensar ter uma síncope. Há com certeza uma razão para isto.” Fez o caminho de volta, com as mãos nos bolsos.
Entrou na sala, ondo a alta-fidelidade continuava a funcionar. O disco estava a chegar ao fim e o silêncio era como uma coleira de arame farpado a apertar o pescoço. O braço do gira-discos chegou ao fim, recuou a pousou no descanso, com um ligeiro “ploc”.
Retirou o disco do prato voltou a guardá-lo, sempre com cuidado. De uma gaveta retirou uma capa de plástico transparente, dentro da qual enfiou o álbum. Introduziu-o em último lugar no grupo dos “T”. Resmungou baixinho:
— Mas que diabo quer dizer “Turesque?”


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