16 de outubro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 290

Efemérides 16 de Outubro
William Spier (1906 - 1973)
William Hannan Spier nasce em Nova Iorque. Escritor, director e produtor de rádio e televisão é responsável por programas de sucesso — alguns de mistério e suspense — que marcaram a história da rádio e da televisão norte americana. Em 1940 Spier chefia o departamento de escrita da CBS e em 1947 ganha um prémio com o que seria o seu maior êxito na radio The Adventures of Sam Spade e em 1962 recebe o prémio dos Writers Guild of America pelo melhor argumento para a série televisiva The Untouchables / Os Intocáveis baseada no livro de Eliot Nes, referido nas efemérides do CALEIDOSCÓPIO 110 (Clicar)


Anúncio da CBS -12 de Julho de 1946


TEMA — ARQUIVOS DO DR. LOCARD — SUA EXCELÊNCIA O ARSÉNICO
O envenenamento é um crime tipicamente feminino. Na enorme série de casos que o laboratório da polícia de Lyon teve que investigar nove vezes em dez as culpadas eram mulheres.
Os períodos perturbados por grandes catástrofes sociais sempre foram marcados por um rebaixamento moral. A guerra, por si só um crime, e o maior de todos, engendra o crime: quase sempre o crime por violência, o assassínio, o roubo à mão armada e a violação. A nossa época verá coroada a sua vergonha e a sua miséria por uma epidemia de envenenamentos: nem a Roma de Nero, nem o período dos Bórgias, nem a febre de envenenamentos que agitou o reinado de Luiz XIV registam semelhante série de cobardes atentados.
Porquê esta temível recrudescência de intoxicações criminosas? No período de 1930 a 1939, tínhamos no laboratório da polícia de Lyon, oito ou dez casos de envenenamento por ano; de 1945 a 1950, verificámos uma média de um por semana. Houve períodos “mais agitados” em que se deu um por dia. Averiguámos, neste aumento extraordinário, dois motivos: um psicológico, a diminuição geral da moralidade; e outro, técnico, a moderna facilidade em adquirir tóxicos.

Há alguns anos a Europa foi invadida pelo insecto dorífera, que destrói principalmente batata, beringela e tomate. Para combater esta praga foi posta à disposição dos agricultores produtos arsenicais, com especialidade o arseniato de chumbo e o arseniato de cálcio, cuja venda no comércio em geral é livre, embora seja proibida aos farmacêuticos. Verifique o facto: vá a uma farmácia e peça…
— O senhor pode vender-me um miligrama de ácido arsénico?
— O senhor tem receita?
— Não.
O farmacêutico não o vai atender, depois de o achar suspeito. Vá então à loja de ferragens mais próxima.
— O senhor pode vender-me ácido arsénico?
— Perfeitamente. Qual prefere? Não tenho ácido arsénico puro, mas posso oferecer-lhe arseniato de chumbo ou arseniato de cálcio.
— Prefiro arseniato de chumbo.
— Quanto quer? Dez quilos? Um saco? Uma tonelada? O senhor tem meios para o transporte?

Não estou a brincar. É assim que se passam coisas com a autorização legal.
O mesmo acontece com o ácido cianídrico, que ainda mais violento do que o arsénico. O farmacêutico não pode vender nem um milésimo de miligrama sem receita, e mesmo assim ficará inquieto com as consequências desta aquisição. A loja de ferragens, entretanto, venderá um quilo de cianeto de sódio a um só cliente se ele disser que é fabricante de espelhos e igual quantidade a um senhor que se anunciar como fotógrafo, ou a outro que se intitular químico. Deste modo, cada um desses compradores, com o beneplácito das autoridades, poderá dizimar à vontade uma divisão de infantaria em pé de guerra.
Na imensa recrudescência actual dos crimes, o arsénico desempenha um papel quase exclusivo. É preciso, contudo, acrescentar a estricnina, igualmente fácil de ser adquirida sob a forma de raticida.
Existem duas técnicas para manipular o arsénico: conforme a dose, o veneno produz uma intoxicação lenta ou a morte rápida. No segundo caso, o aspecto trágico dos acidentes chama imediatamente a atenção, e o atestado de óbito não é fornecido. Mas, no primeiro caso, o arsénico é empregado em doses fraccionadas ministradas no vinho, no sal, no café, ou nos medicamentos, e o enfraquecimento moroso nem sempre alarmará os íntimos, nem o médico. Para matar com esta aplicação é preciso ter um espírito pervertido. Entretanto isso não desagrada ao sexo dito fraco… nove vezes em dez o envenenador é uma mulher.

A pesquisa dos envenenamentos pelo arsénico é actualmente uma das actividades principais dos laboratórios da polícia. No período agudo da crise, em 1949 e em 1950, várias vezes por semana, eu via pessoas no meu gabinete, que antes de qualquer explicação, me mostravam uma mecha de cabelos. Sem perguntas inúteis eu cortava a mecha e enviava-a para o departamento onde havia, permanentemente, um aparelho de Marsch, utilizado para este género de análise.
Devo declarar que entre estes inquietos havia um número bem grande de nervosos da categoria dos toxífobos, isto é, dos envenenados imaginários, e também quero ressalvar que o resultado positivo da análise nem sempre significativa de crime. Podemos ter nos cabelos doses, evidentemente minúsculas, de arsénico fisiológico ou normal, e podemos ter mesmo doses grandes devido a um tratamento perfeitamente normal com licor de Fowler ou cacodilato de sódio, por exemplo.
Felizmente o arsénico deixa vestígios duráveis As exumações, mesmo tardias, permitem distingui-lo nos cabelos e nos ossos. Desta forma muitos crimes foram descobertos, mesmo “tardiamente”.
Assinalo também uma nova forma de envenenamento no campo: Actualmente, como vingança entre vizinhos, envenenam-se os animais domésticos. Constatámos recentemente no laboratório de Lyon: uma coelheira completamente destruída; cachorros de raça mortos, bem como cinco vacas num estábulo; noutra quinta sacrificaram oito vacas leiteiras. Quando se pensa no preço dos animais vemos que os prejuízos são respeitáveis. Ora parece que estes actos são invenções recentes.

Numa região do sudeste da França, dois proprietários vizinhos estavam em -pleno desentendimento. Certo dia um deles averiguou que cinco de suas vacas estavam doentes. Chamou o veterinário, mas o tratamento não salvou os animais. Pensou-se em perturbações digestivas de causa imprecisa. Entretanto, uma menina que morava com seus pais, pouco distante dos dois vizinhos sofreu uma indigestão que assumiu dentro em pouco um carácter alarmante. Como nenhuma outra pessoa da família sentiu a menor indisposição, indagaram o que ela tinha comido fora de casa, e a criança disse ter comido uma maçã apanhada no chão, num campo de trevo, por sinal que estava até com um gosto muito ruim. Como ela indicou o lugar, foram ver e verificaram ser aquele o local onde pastavam as vacas que os cuidados do veterinário não tinham conseguido salvar. Arrancaram um punhado de erva, e a análise revelou a presença de arseniato de cálcio. Todo o campo havia sido regado com este produto para envenenar os animais e fora assim acidentalmente contaminada as maçãs. A menina salvou-se.
Todavia esse incidente teve um desfecho insólito: os camponeses donos das vacas que morreram vieram consultar-me antes de apresentar queixa. Expliquei-lhes que a cansa do acidente era muito clara. Então disseram que conheciam o criminoso (o vizinho com o qual tinham brigado) e que iam eles próprios fazer justiça. Tentei dissuadi-los e exortei-os a apresentar queixa no tribunal da cidade vizinha, pois nem a lei e nem a moral autorizam os cidadãos a fazer justiça por suas próprias mãos.
Muito mais tarde vim a saber o fim trágico da história. Os camponeses, indignados com o prejuízo sofrido, eximiram-se de apresentar queixa ao procurador da República, mas raptaram o suspeito, levaram-no para a casa deles e penduraram-no pelos pés, depois de o despirem. Terão eles, conforme me contaram, açoitado a vítima com urtigas? O que ficou provado foi que eles se equivocaram na hipótese sobre o culpado e torturaram um inocente. Este, com toda a razão, fê-los comparecer perante a justiça, que os castigou com todo o rigor.
Tive também ocasião de examinar um caso típico de envenenamento em série. Um homem, casado há pouco tempo, morreu em consequência de sérios distúrbios digestivos. Suspeitou-se de um crime, foi de facto descoberto arsénico no seu corpo e o rumor público incriminou a viúva da vítima, a Sr.ª. Decorbini. O inquérito revelou que o primeiro marido daquela mulher também sucumbira em condições bastante suspeitas, assim como cinco dos seus filhos, falecidos ainda bem na infância. As exumações dos cadáveres, acusou a presença de arsénico e em todos, e a mulher acabou por ser condenada a trabalhos forçados. 


TEMA — CONTO CURTO — CRIME E CASTIGO
De Orlando Guerra
Encolhido num canto do armário, as mãos cruzadas sobre os joelhos, ouvia passos rápidos no corredor.
Procuravam-no por todo o lado.
Tremia como varas verdes.
Seria bom o seu esconderijo? … E se o encontravam? …
O terror amarfanhava-lhe o peito, quando se apercebeu de que os passos estacavam e a porta do armário se abria lentamente.
Um riso trocista assomou ao rosto do seu perseguidor.
— Pensavas que te salvavas, he
in? …
Uma mão férrea agarrou-lhe o braço, arrastando-o para o local tortura.
Não havia meio de escapar.
Cometera o delito. Desobedecera às instruções que continuamente lhe haviam sido repetidas. Mas não pudera resistir…
E agora ia ser punido. Atrozmente torturado…
E enquanto o algor gélido do lajedo lhe penetrava as plantas dos pés, mãos hábeis e duras despiam-no sem cerimónia.
Ao lado chiavam já os instrumentos de tortura.
Olhou ainda o seu carrasco, numa réstia de esperança, tentando descortinar um lampejo de humanidade naquele rosto desapiedado.
Um encontrão mais e sofreu logo na carne o primeiro jacto da tortura…

Nunca mais iria brincar no galinheiro para não ter que tomar banho de chuveiro.



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