13 de setembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 257

Efemérides 13 de Setembro
Roald Dahl (1916 – 1990)
Nasce em Llandaff, Cardiff, País de Gales. Filho de pais noruegueses deve o seu nome Dahl ao célebre explorador norueguês. Roald Dahl é conhecido pelas suas histórias infantis, que são as mais vendidas em todo o mundo, sendo a mais famosa Charlie e a Fábrica de Chocolates. O autor escreve também cerca de 70 contos policiários / macabro / humor negro, para adultos, muitos só publicados depois da morte do autor e alguns adaptados ao cinema. Em Portugal, no campo do policiário estão editados:
1 - Contos Do Imprevisto (1986), Círculo de Leitores. Título Original: Tales of the Unexpected (1979).
2 - Novos Contos Do Imprevisto (1986), Círculo de Leitores. Título Original: More Tales of the Unexpected (1980).
Obs:livros também publicados pela editora Teorema.



TEMA — EXTRACTO DE CONTO DE ROALD DAHL — O JANTAR
Roald Dahl Começou a escrever em 1942 dando nas vistas pelo seu humor negro e pelo insólito e inesperado das situações. O texto que se segue é testemunho de o estilo de Roald Dahl
M. Constantino


… “E é isto”, acrescentou ele. “Eu sei que é má altura para te estar a dizer, mas não havia outra maneira. Claro que te dou dinheiro e cuido de ti. Mas não é preciso haver espalhafato nenhum. Pelo menos, espero que não. Não ia cair bem no meu emprego.”
O primeiro instinto dela foi não acreditar em nada daquilo, rejeitar tudo. Passou-lhe pela cabeça que talvez ele nem sequer tivesse falado, que tinha sido ela a imaginar tudo. Talvez se ela continuasse como se nada fora, mais tarde, quando acordasse, por assim dizer, talvez descobrisse que afinal nada daquilo tinha acontecido.
“Vou arranjar o jantar”, disse, ela num sussurro, e desta vez ele não impediu que ela se levantasse.
Ao atravessar a sala, não sentiu os pés a tocar no chão. Não sentia nada, a não ser uma ligeira náusea e um desejo de vomitar. Todos os seus gestos eram automáticos — os passos a descer as escadas até à cave, o interruptor, a mão dentro da arca congeladora a pegar no primeiro objecto que encontrou. Tirou-o da arca e olhou para ele. Estava embrulhado em papel, por isso ela desembrulhou-o e olhou outra vez.
Uma perna de borrego.
Está bem, então, come-se borrego para o jantar. Levou-o para cima, segurando-o pelo osso com as duas mãos, e ao atravessar a sala viu-o de pé junto à janela de costas para ele e parou.
“Por amor de Deus,” disse ele, ouvindo-a, mas sem se voltar. “Não faças jantar para mim. Vou sair.”
Nesse momento, Mary Maloney limitou-se a aproximar-se e sem parar levantou a perna de borrego congelada bem alto e bateu com toda a força na nuca dele.
Era como se lhe tivesse dado com uma moca de aço.
Deu um passo para trás à espera, e o mais engraçado é que ele continuou ali de pé pelo menos quatro ou cinco segundos, a baloiçar suavemente. Depois caiu com toda a força em cima da carpete.
A violência da queda, o barulho, a mesinha a tombar, fizeram-na sair do estado de choque. Começou a despertar lentamente, sentindo-se gelada e surpreendida, e ficou um bocado a piscar os olhos, fitando o corpo, e segurando ainda aquele bocado de carne ridículo com muita força.
Muito bem, disse ela consigo mesma. Matei-o.
Foi extraordinário como de repente ficou perfeitamente lúcida. Começou a pensar muito depressa. Como mulher dum detective, sabia muito bem qual seria a pena. Óptimo. Não lhe fazia diferença nenhuma. Na verdade, seria um alívio. Mas por outro lado, o que seria da criança? Será que os matavam aos dois… à mãe e ao filho? Ou será que esperavam até ao décimo mês? O que é que ele fariam?
Levou a carne para a cozinha, pô-la num prato, acendeu o forno no máximo, e meteu-a lá dentro. Depois lavou as mãos e subiu a correr para o quarto. Sentou-se à frente do espelho, compôs a cara, retocou os lábios e a pintura. Tentou sorrir. Saiu um bocado esquisito. Tentou outra vez.
“Mais alguma coisa?” O merceeiro inclinou a cabeça para o lado, olhando para ela simpaticamente. “E para a sobremesa? O que é que lhe vai dar de sobremesa?”
“Bem… tem alguma sugestão, Sam?”
O homem deu uma olhadela à sua volta. “E que tal uma fatia grande de bolo de queijo? Eu sei que ele gosta.”
“Perfeito”, disse ela. “Ele gosta imenso de bolo de queijo.”
E depois de estar tudo embrulhado e de ter pago, fez um grande sorriso e disse: “Obrigado, Sam. Boa tarde.”
Por isso, ao entrar na cozinha pela porta das traseiras ia a cantarolar e a sorrir. “Patrick !”», chamou ela. Como é que estás, querido?”
Poisou o embrulho em cima da mesa e dirigiu-se para a sala; e quando o viu ali deitado no chão com as pernas todas dobradas e um braço torcido debaixo do corpo, foi de facto um grande choque. Todo o amor e desejo que sentia por ele cresceram dentro dela, e correu para ele, ajoelhando-se ao seu lado e começando a chorar perdidamente. Foi fácil. Não foi preciso representar.
Uns minutos depois levantou-se e dirigiu-se para o telefone. Sabia o número da esquadra de polícia, e quando um homem a atendeu do outro lado ela exclamou: “Depressa! Venham depressa! O Patrick está morto!”
“Quem é que fala?”
“É a sra. Maloney. A sra. Patrick Maloney.”
“E diz que o Patrick Maloney morreu?”
“Acho que sim”, soluçou ela. “Está deitado no chão e acho que está morto.”
“Vamos já para aí”, disse o homem.
O carro chegou depressa, e quando ela abriu a porta da entrada, entraram dois polícias. Conhecia ambos, conhecia quase todos daquela esquadra, e caiu nos braços de Jack Noonan a chorar histericamente. Ele sentou-a cuidadosamente numa cadeira, e depois foi ter com o outro, que se chamava O'Malley, e estava ajoelhado junto do corpo.
“Está morto?”, perguntou ela a chorar.
“Receio que sim. O que é que aconteceu?
Em poucas palavras ela contou que tinha ido à mercearia e que ao voltar o tinha encontrado no chão. Enquanto ela falava, Noonan descobriu uma pequena mancha de sangue coagulado na cabeça do morto. Mostrou-a O'Malley, que se levantou imediatamente e se dirigiu rapidamente para o telefone.
Pouco depois chegavam mais homens. Primeiro o médico, depois dois detectives, um dos quais ela conhecia de nome. Mais tarde veio um fotógrafo da polícia, que tirou fotografias, e um homem que sabia de impressões digitais. Houve grandes conciliábulos em voz baixa junto do cadáver, e os detectives fizeram-lhe uma quantidade de perguntas. Mas trataram-na o tempo todo com muita amabilidade. Ela voltou a contar o que se tinha passado, dessa vez desde o princípio, desde o momento em que Patrick tinha entrado em casa e ela estava a costurar, e ele estava cansado, tão cansado que não tinha querido ir jantar fora. Contou que tinha posto a carne no forno — “Está agora a assar” — e que tinha dado um salto à mercearia para comprar legumes, e que ao voltar o tinha encontrado deitado no chão.
“A que mercearia foi?”, perguntou um dos detectives.
Ela disse-lhe, e ele voltou-se e segredou qualquer coisa ao outro detective, que saiu imediatamente.
Dentro de quinze minutos tinha voltado com uma página de apontamentos e houve outro conciliábulo, e por entre os soluços ela ouviu algumas frases segredadas — “… agiu naturalmente… muito bem disposta… queria fazer-lhe um bom jantar… ervilhas… bolo de queijo… é impossível que ela…”
Passado um bocado, o fotógrafo e o médico foram-se embora e entraram outros dois homens, que levaram o corpo numa maca. Depois foi-se embora o homem das impressões digitais. Os dois detectives ficaram, e os dois guardas também. Mostraram-se extremamente simpáticos com ela, e Jack Noonan perguntou-lhe se ela não preferia ir para outro sítio qualquer, talvez para casa da irmã, ou mesmo para casa dele, onde a sua mulher tomaria conta dela e arranjaria um sítio para ela dormir nessa noite.
“Não,” disse ela, “gostaria de ficar onde estava, naquela cadeira. Um pouco mais tarde, talvez, quando se sentisse melhor, sairia dali”.
Por isso deixaram-na ali enquanto se ocupavam do que tinham a fazer, rebuscando a casa. Volta e meia um dos detectives fazia-lhe mais uma pergunta. Por vezes, Jack Noonan dirigia-lhe algumas palavras simpáticas ao passar junto dela.
Mais tarde, um dos detectives aproximou-se dela e sentou-se ao seu lado. Perguntou-lhe se ela sabia de alguma coisa dentro de casa que pudesse ter sido usado como arma. Se ela se importaria de dar uma volta para ver se faltava alguma coisa… uma chave de fendas muito grande, por exemplo, ou uma jarra de metal pesada.
“Não tinham jarras de metal,” disse ela.
“Ou chaves de fendas grande?”
Estava convencida de que não tinham uma chave de fendas grande. Mas talvez houvesse coisas dessas na garagem.
A busca continuou.
Um a um, os outros foram entrando e ela convenceu-os a tomarem um whisky. Ficaram por ali de pé, um pouco constrangidos, de bebida na mão, pouco à vontade na presença dela, tentando reconfortá-la. O sargento Noonan foi até à cozinha, voltou muito depressa e disse: “Olhe, sra. Maloney. Sabe que o seu forno continua aceso e a carne ainda lá está dentro.”
“Ai que horror!”, exclamou ela. “Pois estál”
“É melhor eu apagar-lhe o forno, não acha?”
“Não se importa, Jack? Muito obrigada.”
Quando o sargento voltou da segunda vez, ela olhou para ele com os seus olhos escuros, grandes, chorosos. “Jack Noonan”, disse ela.
“Sim?”
“Não me faz um pequeno favor… você e os outros?”
“Podemos tentar, sra. Maloney.”
“Bem”, disse ela. “Estão aí todos, e eram grandes amigos do Patrick também, e estão a tentar apanhar o homem que o matou. Devem estar cheios de fome, porque já passa muito da hora de jantar, e eu sei que o Patrick nunca me perdoaria, Deus o abençoe, se eu os deixasse continuar cá em casa sem os tratar como deve ser. Por que é que não comem o borrego que está no forno? Deve estar no ponto certo neste momento.”
“Nem por sombras”, disse o sargento Noonan.
“Por favor”, suplicou ela. “Comam-no, por favor. Eu estou incapaz de comer seja o que for, e muito menos uma coisa que tinha cá em casa quando ele cá estava. Mas para vocês não há problema. Faziam-me um favor se comessem o borrego. Depois podem continuar com o vosso trabalho.”
Houve grandes hesitações entre os quatro polícias, mas estavam nitidamente com fome e acabaram por ser persuadidos a irem para a cozinha e a servirem-se. A mulher ficou onde estava, a ouvi-los através da porta aberta, e ouvia-os entre si, vozes espessas e pouco claras, porque tinham a boca cheia de carne.
“Queres mais um bocado, Charlie?”
“Não. É melhor não comermos tudo.”
“Ela quer que se coma tudo. Foi ela que disse. Estamos a fazer--lhe um favor.”
“Bom, está bem. Dá-me mais um bocado.”
“Deve ter sido uma grande moca que o tipo usou para bater no desgraçado do Patrick”, disse um deles. “O médico diz que ele tinha o crânio completamente esmigalhado, como se tivesse levado com um malho.”
“É por isso que não deve ser difícil encontrá-lo.”
“É isso mesmo que eu penso.”
“Fosse quem fosse que fez aquilo, não vai andar por aí com uma coisa dessas mais tempo do que for preciso.”
Um deles arrotou.
“Na minha opinião, é aqui em casa que deve estar.”
“Se calhar está mesmo debaixo do nosso nariz. O que é que achas, Jack?”.

Comentário: O subentendido é divinal. Puto imprevisto, puro humor negro.
M. Constantino

Ilustração de Cyril Sinel

Sem comentários:

Enviar um comentário