21 de agosto de 2012

CALEIDOSCÓPIO 234

Efemérides 21 de Agosto
Anthony Boucher (1911 - 1968)
William Anthony Parker White nasce em Oakland, California. EUA. Editor e escritor de policiários e ficção científica sob os pseudónimos Anthony Boucher — o mais conhecido— e H. H. Holmes ou Herman W. Mudgett. Tem um papel fundamental na divulgação dos referidos géneros literários quer através de diversos projectos editoriais, peças radiofónicas, quer pela própria escrita, contos e romances ou pela sua colaboração na origem, em 1946, dos Mystery Writers of America. Anthony Boucher é considerado como um dos grandes mestres do mistério de quarto fechado. Em Portugal está editado:
1 – O Enigma Da Túnica Amarela (1964), Nº137 Colecção Xis, Editorial Minerva. Título Original: Nine Times Nine (1940).


TEMA — CONTO PÓSTUMO DE ANTHONY BOUCHER — PORQUE DEIXOU JACK O ESTRIPADOR DE MATAR

Só após o falecimento de Anthony Boucher, em 1968 foi encontrado o que seria, provavelmente ã última história do excelente escritor e crítico literário.
É uma história diferente sobre Jack o Estripador, não estava preparada para publicação e faltava-lhe o título.
Com arranjo livre de M. Constantino esperamos tal como nos sucedeu, admirar a perícia do escritor.

Em 1888, Londres foi aterrorizada por Jack, o Estripador, que de Abril a Novembro daquele ano matou pelo menos sete prostitutas, sem deixar a mais leve pista de sua identidade.
A série de crimes parou de repente. Depois de 1888, Jack nunca mais estripou. Isto porque no dia 12 de Julho de 1889…

… nos degraus do University Çollege, estava cercado de moças que tagarelavam perguntas destinadas a provar que haviam prestado atenção à sua palestra/demonstração.
Aquelas jovens eram, sabia, sendo biologista, fêmeas humanas, sem sombra de dúvida. Mas para ele as mulheres estavam divididas em três classes: anjos, demónios e estudantes.
Livrou-se do grupo e encaminhou-se para a Euston Road. Havia oito meses não encontrava anjos nem demónios. Os acontecimentos de 1888 pareciam infinitamente remotos, como a lembrança de uma febre, depois da convalescença. Tinha sido realmente uma espécie de febre cerebral, talvez — sorriu, suavemente — uma espécie de loucura. Mas depois do seu próprio anjo ter morrido daquela inexprimível infecção que o demónio havia implantado — e que o afectara tão ligeiramente mas havia penetrado fatalmente nesses temíveis órgãos que tornavam os anjos vulneráveis aos demónios.
Observou, clinicamente, que estava a respirar com dificuldade e que a mão tacteava o bolso — gesto tolo, já que não carregava o bisturi há oito meses. Deliberadamente diminuiu o passo e o ritmo da respiração.
A febre tinha passado.
Pardon, m’sieur.
 A mulher era jovem, da mesma idade de suas alunas, mas ninguém a tomaria por uma colegial. Mesmo aos seus olhos pouco afeitos, as roupas dela falavam de elegância, de distinção, numa palavra de Paris. O seu delicado perfume não parecia um extracto fabricado pelo homem, mas pura essence de femme. Os cabelos dourados emolduravam um rosto provocante, o nariz levemente arrebitado, o lábio superior ligeiramente cheio — irregular, mas delicioso.
— Pois não, mamselle, respondeu, cortês e aprovadoramente.
— Se m’sieur pudesse fazer o favor de ajudar uma estrangeira na -sua grande cidade… Eu estou à procura de um estabelecimento de bagagens.
Tornou dos dedos enluvados o pedaço de papel onde estava escrito o endereço do “estabelecimento de bagagens”.
— A senhorita está na extremidade errada de Euston Road — explicou. — Permita-me que lhe chame um táxi, pois é muito longe para ir a pé num dia quente como este.
— Ah, sim estamos num verão dos verões, não é? Alguém me disse que na Inglaterra nunca faz calor, mas veja como estou suando.
Ele franziu o cenho.
— Ih, eu disse alguma, coisa errada outra vez? Mas é verdade, eu estou suando —baixou os olhos imitando sua expressão séria, depois olhou-o, riu docemente e pousou sua pequenina mão no braço dele.
— Em sinal de perdão, m’sieur aceito um gelado antes de me chamar um táxi — e acrescentou — meu nome é Gaby.

Ele sentiu-se infinitamente renovado. Fora um erro, via agora, afastar-se tão radicalmente da companhia das mulheres depois de a febre ter passado. Havia encanto, conforto, na presença de uma mulher. Não a estudante ou o demónio mas a verdadeira mulher: um anjo.
Gaby levantou-se da mesa.
M’sieur foi muito delicado com uma estranha que cruzou seus domínios. Acho que agora vou procurar a minha casa de couros.
 Mademoiselle Gaby…
 Hein? Fale, m’sieur le professeur. O que o senhor deseja saber é se podemos nos encontrar novamente?
— Seria uma honra para mim se a senhorita, enquanto estiver em Londres…
— Ela piscou os olhos, e ele desejou não ter entendidos— Precisamos desse palavriado todo? Acho que já nos entendemos, não? Existe um pequeno bistrô, um pub — e ela deu-lhe todas as instruções. Sem dizer palavra, ele tomou nota.
 M’sieur não se arrependerá.
Ela deu-lhe o braço enquanto ele chamava o táxi. Ele nada disse, falou somente com o motorista. Depois partiu.
— E eu… pensando nela como um anjo — gemeu ele.
A mão tecteou novamente o bolso vazio.

O baú novo e brilhante, e extraordinariamente grande, dominava o ambiente. Gabrielle Bompard despiu-se completamente
Michel Eyraud ergueu os olhos preguiçosamente da cama onde estava deitado.
— Conseguiu tudo?
Eyraud apontou indolentemente para a mesa. Um rolo de corda, uma talha, parafusos, chave de parafusos… Gaby sorriu, aprovando.
— E eu comprei a mala, tão grande e bonita, e isto. — Abriu a bolsa e tirou uma cinta vermelha e branca. Assenta com o vestido de noite. E é resistente.
Esticou-a, puxando com força, resmungando entusiasmada.
Eyraud olhou para o baú, para a talha e para a cinta vermelha e branca. Riu feliz.

Encontrou-a no bar. O cabelo louro captava a luz e a reflectia, formando um halo zombeteiro em torno do seu atrevido rosto de demónio.
Os dedos confirmaram-lhe que o bisturi estava de volta ao seu lugar. Fora um tolo em chamar “febre” ao que era simplesmente a temperatura normal e correcta.
A sua missão na vida eralivrar o mundo dos demónios. Apenas isso. E nem todos os demónios tinham sotaque cockney e moravam em Whitechapel.
— Seja bem-vindo, m’sieur le professeur — Ela fez uma reverência, com graça maliciosa.

Ele saiu do bar esperou na rua. A noite era agradável e o fog começava a diminuir. Numa noite exactamente como aquela, em Agosto último… Como era mesmo o nome dela? Lera depois, no Times . Marta Tabor? Tabby? Tabinha-demónio. Cortou o dedo no bisturi. Enquanto sugava o sangue, ouviu um relógio bater. Esperara quase meia hora; aonde fora o tempo? O demónio deveria estar impaciente.
A saleta estava as escuras, mas uma branda luz vinha do quarto. A sua mão segurou firmemente o bisturi.
O demónio conduziu-o pela porta entre os dois aposentos. Colocou a cinta em volta do pescoço dele.
— Assim — ,disse satisfeita. — Não acha que parece uma linda gravata vermelha e branca?
A mão e o bisturi saíram do bolso
E Michel Eyraud, que estava no escuro da saleta, ligou as pontas da cinta à corda que subia para a talha, e deu-lhe um potente puxão.
A corda saltou para o tecto, a cinta, seguiu-a, e o pescoço fino do professor partiu-se.
O bisturi caiu de sua mão morta.
Exatamente como planearam fazer com o oficial de justiça Gouffé, despiram o .corpo e examinaram a carteira.
— Nada mau — disse Eyraud — para um ensaio.
E meteram o cadáver no baú.
Gaby praguejou ao pisar o bisturi.
— Que diabo é isto? — Apanhou-o do chão. — É afiado. Será que ele era um desses tipos que gostam de um pouco de sangue para aumentar o prazer?

A noite de estreia, para infortúnio do oficial de justiça Gouffé, correu tão bem quanto o ensaio. Mas os artistas não contavam com a paciência, a sua determinação e o seu génio policial de. Marie-François Goron, chefe da Sureté de Paris.
O desfech, todos os aficionados de crimes reais conhecem: Eyraud foi guilhotinado nove meses depois do ensaio, e Gaby, que sorriu o tempo todo para o júri, foi condenada a vinte anos de trabalhos forçados.
Quando Goron esteve em Londres, na Scotland Yard conversou longamente com o inspector Frederick G. Abberline.~

… a não ser que ataque novamente, vai acabar como um dos maiores casos não solucionados da história. Jack, o Estripador, nunca será enforcado.

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