2 de agosto de 2012

CALEIDOSCÓPIO 215

Efemérides 2 de Agosto
Régis Messac (1893 - 1945)
Nasce em Champagnac, França. Tradutor e escritor é considerado como o primeiro analista da literatura policial e de ficção científica. Autor de um ensaio sobre a origem do romance policial Le Detective Novel et L'influence De La Pensée Scientifique e de Influences Française Dans L'œuvre d'Edgar Poe, ambos editados em 1929, escreve também os primeiros ensaios sobre Ficção Científica publicados em França. Régis Messac é detido pelos alemães em 1943, deportado e acaba por ser dado como desaparecido na Alemanha em 1945. Le Detective Novel et L'influence De La Pensée Scientifique, um volume com mais de 500 páginas foi reeditado o ano passado em França e é reconhecido como uma obra de leitura obrigatória.


Joseph Hayes (1918 – 2006)
Joseph Arnold Hayes nasce em Indianapolis, Indiana, EUA. Editor, produtor teatral, argumentista e escritor de 3 dezenas de peças de teatro e de 10 romances policiários. Na sua obra literária destaca-se o thriller The Desperate Hours de 1954, mais tarde adaptado — pelo autor — ao teatro e ao cinema com grande sucesso, por duas vezes (1955 e 1990). Este livro ganha o Grand Prix de Littérature Policière e o Edgar Allan Poe Award para melhor argumento em 1956. Em Portugal estão editados:
1 – O 3º Dia (1967), Editorial Minerva. Título Original: The Third Day (1964).
2 – Horas De Desespero (1970), nº190 Colecção Xis, Editorial Minerva. Título Original: The Desperate Hours (1954).



 
TEMA — ESTUDOS DE PSICOLOGIA CRIMINAL — SACRIFÍCIO MATERNAL
É de interesse notar que se o erro judiciário resulta muita vez de falsos testemunhos de terceiros contra o suposto criminoso, não é raro que se baseie em falsas declarações de alguém que pretende favorecer o verdadeiro delinquente, chamando a si próprio a autoria do facto. É que ao lado das ervas daninhas e tóxicas cresce também a relva delicada, ou o arbusto de qualidades terapêuticas, ou a planta que perfuma o ambiente; assim, juntamente com a maldade humana repontam na alma sentimentos nobres, abnegação e altruísmo, despreendimento, espírito de sacrifício.
No livro de João Luso, Vocês, Criminosos, há um conto que vem a talhe de foice. É o que se intitula A Mulher do Bar, adaptação brasileira de um conhecido drama estrangeiro. No bairro das Laranjeiras cai assassinado um cavalheiro de importância social, que acabava de receber em seus aposentos a visita de uma senhora. A fotografia desta é encontrada entre os papéis do morto. Seria ela a assassina?
Inquire a polícia. A imprensa toma conta do caso misterioso.
— Quem foi que matou? Perguntam.
Alguém entra num bar para um aperitivo. Ali está, em libações, a um canto, uma dama que ele reconhece ser aquela cuja fotografia os jornais publicam.
— O senhor quer fazer-me um favor? Leve-me a uma delegacia. Preciso de acabar com isto. Sim, fui eu que pratiquei o crime. Matei esse homem porque tinha razão para isso. Ele me havia feito promessas de fidelidade, de constância até a morte. Em minha casa, desde que começou a visitar-me, não entrou mais ninguém. Passei a ser uma coisa sua. Aproveitou o que me restava da mocidade, tudo o que me podia valer no mundo… E um dia, sem o menor motivo da minha parte, naturalmente porque se agradara doutra, declarou-me que era obrigado a deixar-me. Revoltei-me. De repente, secaram-se-me as lágrimas. Passou-me por diante dos olhos uma nuvem vermelha. Tinha ali à mão uma faca. Matei.
O cavalheiro aconselha-a a explicar o facto à autoridade. Vai. Pouco depois, tomado de curiosidade e comiseração, levanta-se também e dirige-se à delegacia. Nesse momento vê que dois soldados querem obriga-la a retirar-se, apesar da sua confissão de culpada.
— Mas, fui eu que matei… fui eu… fui eu! — gritava a mulher entre soluços.
O comissário, à sua mesa, olhava a cena placidamente.
João Torres, o visitante, tenta intervir.
— Talvez ela diga verdade…
A autoridade, porém, declara:
— O criminoso já está preso.
— E o retrato encontrado? Trata-se evidentemente…
 Então o comissário, pondo termo às explicações:
— Quem matou o homem foi o filho dela. Compreendeu?


TEMA — O DIABO EM DECADÊNCIA — TEMPOS MODERNOS
De Lucien Lowen
O diabo estava sentado sob uma árvore folhas, jogando paciências. Era uma noite de luar, clara e fria, com os montes e vales banhados por uma fantástica luz prateada. Saí da Hospedaria Dartmoor e caminhei para a árvore nua e de galhos quebrados, que admiro particularmente em virtude, talvez, da sua forma grotesca. Um galho está intacto e dobra-se para cima, à semelhança do gesto de um homem que houvesse fracassado na vida em quase tudo.
Debaixo da árvore encontrava-se algo escuro agasalhado, que reconheci como sendo o Diabo, mas somente depois é que me aproximei mais perto. Era uma figura perfeita de Hyronimus Bosch: um macaco de feitio surrealista. As mãos que seguravam as cartas eram muito descoradas, entretanto bem cuidadas, o que fazia com que se parecessem com luvas brancas em contraste com a luzidia pelagem negra do macaco satânico.
Era fascinante para ruim encontrar-me assim, inopinadamente, diante de um tipo tão famoso e histórico.
— Desculpe-me — disse eu aproximando — Mas não acreditava que o senhor existisse realmente.
O Diabo voltou para mim os olhos grandes e melancólicos. Havia na sua expressão um misto de inteligência, repugnância e amargura, coisa, que me impressionou profundamente.
— Sei que pertenço ao passado — respondeu-me com um encolher de ombros, enquanto baralhava as cartas. Depois, destacou do maço o seis de copas e nada mais disse.
— Será que esse jogo de paciência tem um significado mais amplo? — disse eu para puxar conversa.
— Para determinadas pessoas, sim — disse impassível. — Cada uma dessas cartas representa uma alma humana. Eis, por exemplo, o seis de copas. É a Joana uma jovem dançarina, graciosa e bonita, de cabelos pretos ambiciosa. Está neste momento no camarim de um teatro, desembaraçando-se do excesso de pintura.
Dividiu o baralho em duas partes, retirando de uma delas uma outra carta.
— Cá está o cinco de espadas. Coloco-o sobre o seis de copas, e acontece isto: Prokhimof, e cinco de espadas, está a entrar no aposento onde se encontra Joana. Prokhimof, é um agente de filmes protector de talentos nascentes e com um nada de canalhice sob a capa de amistosa assistência.
— Começo a entender — interrompi — Mas pretende o senhor interferir com o destino dessas criaturas?
— Cavalheiro! — A voz do habitante das entranhas da terra soou roufenha, enquanto ele arremessava para longe as cartas — Se o senhor quer discutir, meu amigo perguntador, estou sua disposição — prosseguiu, agora, com, delicadeza.
Alisou o pêlo negro em torno do corpo, colocou um chapéu de feltro preto sobre os chifres curtos e levantou, a gola do sobretudo, o que de pronto, lhe deu a aparência de um frequentador do bar do Café Royal.
— O senhor tocou num dos meus pontos sensíveis — recomeçou ele a conversa depois de ter caminhado um pouco — Saiba que o meu poder se esfumou. Idos são os tempos, quando eu me deliciava na luta por uma alma, quando deixava ã solta a inveja, a avareza, ambição enfim, todos os pecados mortais, com a secreta missão de perverter uma alma simples. Havia então resistência, obstáculos intransponíveis, havia o grande e poderoso baluarte, Deus. Não pense que estou propenso a subestimar o meu adversário. Acontece, porém, que Deus, essa sublime inspiração do homem imperfeito. Deus morreu no coração humano. A humanidade louva-o oralmente, mas a sua verdadeira, influência desapareceu. Ida é a Idade Média. Assim como a elevação do espírito. Ao passado pertencem a angustiosa ansiedade e o desejo por um amparo após os conflitos íntimos. As limitações da tradição já não existem, também.
— Exibiram o meu retrato através dos séculos, gravaram-no na pedra das Catedrais, Fui eu quem concorreu para que as visões do Inferno, de Breughel, fossem moldadas. O mesmo fiz com as de Hyronimus Bosch. Milhares de artistas, talentosos ou não, preocuparam-se com a minha figura., emoldurando belamente o alegre vermelho do inferno no azul infinito do céu. Feiticeiros e bruxas morreram queimados em holocausto à minha causa, porque me acreditavam real. Tudo isso sem mencionar os teólogos, que viveram a preocupar-se comigo.
— Tudo acabado. Tornei-me uma relíquia de folclore, uma superstição decadente. Eu que era a sombra grandiosa, a sombra que era a razão do brilhar da grande luz.
— Caí tão baixo que me tornei um vigário, tentando, desesperadamente, reviver a crença em Deus, para assim salvar uma parcela mínima do meu poder. Em vão o meu esforço, pois o inferno domina desvairadamente na terra sem o meu auxílio. Se quer certificar-se basta que relance os olhos em volta.
— Vez ou outra, em noites calmas e enluaradas, costumo sentar-me aqui, na orla das charnecas, eu, o fantasma do princípio eterno, para jogar paciências, tal como se fosse um coronel reformado. Mas adeus, vou-me embora!

Hieronymus Bosch - Jardim das Delícias (detalhe)

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